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Quem tem medo de Licença Compulsória?

Felipe Carvalho

Dando sequência ao debate promovido no webinar “Patentes de vacinas para Covid-19: licenciamento compulsório é a solução?”, o Centro de Pesquisa em Ciência, Tecnologia e Sociedade do Ipea convidou especialistas para debaterem a questão sob diferentes perspectivas. Felipe Carvalho, coordenador no Brasil da Campanha de Acesso de Médicos Sem Fronteiras (MSF), apresenta argumentos favoráveis ao licenciamento compulsório de patentes da vacina contra a Covid-19, enquanto Fabiano Barreto e João Emilio Gonçalves, respectivamente superintendente de desenvolvimento e coordenador de propriedade intelectual da Confederação Nacional da Indústria (CNI), apresentam argumentos contrários. Os textos foram publicados simultaneamente e refletem exclusivamente a opinião dos autores sobre esse tema controverso. ​

 

Quem tem medo de Licença Compulsória?

Felipe Carvalho

A Convenção para o Controle do Tabaco (2005) gerou resistências da indústria tabagista. O Tratado sobe Comércio de Armas (2014) desagradou a indústria bélica. A licença compulsória incomoda a indústria farmacêutica, bem como a proposta de suspensão temporária de direitos de propriedade intelectual para produtos de Covid-19, apresentada em outubro de 2020 na Organização Mundial do Comércio (OMC). 

Muitas vezes a qualidade de uma política pública pode ser medida pela quantidade de ataques que sofre do setor a ser regulado. Construir um mundo mais saudável, seguro e equitativo exige coragem para resistir a tais pressões. 

Em boa medida, as pressões da indústria farmacêutica contra o uso de licença compulsória ou do mecanismo da suspensão global se fazem presentes no debate público e partem de três argumentos: (i) de que o licenciamento compulsório pode gerar reações negativas por parte das empresas, como retaliações comerciais e redução dos investimentos; (ii) de que as patentes não se constituem uma barreira ao aumento da produção de vacinas; e (iii) de que a suspensão dos diretos de propriedade intelectual não garantem o aumento de oferta, dada a inexistência de capacidade produtiva e a restrição de oferta de insumos.

Inicialmente, cabe ressaltar que a licença compulsória é uma medida legítima, regulamentada nacional e internacionalmente e cuja validade foi reafirmada na histórica declaração de Doha, de 2001, na OMC, bem como em diversas outras declarações multilaterais. 

No contexto da Covid-19, diversos países estão reafirmando a importância desse instrumento, que interrompe monopólios e estabelece um ambiente de concorrência em prol de uma oferta ampliada e a preços mais sustentáveis de produtos essenciais de saúde. Até mesmo o Escritório de Comércio dos Estados Unidos reconhece em seu Relatório Especial 301 que respeita o direito dos países de utilizar a licença compulsória em situações de emergência, inclusive dispensando negociação prévia com o titular da patente.

Fato é que as poucas retaliações que a indústria farmacêutica tentou levar adiante no passado resultaram apenas em grandes danos de imagem para as próprias empresas. O caso mais famoso, conhecido como “Big Pharma Vs Nelson Mandela”, foi classificado recentemente pelo diretor geral da Federação Internacional dos Produtores e Associações Farmacêuticas (IFPMA) como um “terrível equívoco”. 

No caso do Brasil, que emitiu sua única licença compulsória em 2007, as ameaças propaladas antes da emissão da licença não se confirmaram. O país nunca sofreu retaliação comercial ou jurídica, a empresa continuou atendendo o mercado brasileiro e inclusive faturou 1,4 bilhões em vendas líquidas em 2018. Tampouco deixou de realizar parcerias, tanto que em 2018 fechou um grande acordo com o Instituto Butantan para produção da vacina de Dengue. E, fato curioso, a própria empresa pediu uma licença compulsória na Corte Federal Alemã em 2017 para atender seus interesses. 

O segundo argumento contrário à licença compulsória baseia-se na ideia de que ela não é necessária, pois as barreiras de propriedade intelectual não são um problema para a ampliação da produção de vacinas de Covid-19. Fica difícil sustentar essa hipótese na medida em que o presidente dos Estados Unidos, país sede das maiores empresas farmacêuticas, e a Fundação Gates, maior financiador de projetos em saúde global, reconheceram que a propriedade intelectual é, de fato, uma barreira no caminho em direção ao acesso equitativo à imunização. 

A empresa norte-americana Abbvie, que foi alvo de uma licença compulsória em Israel logo em março de 2020 e perdeu o monopólio no país sobre o medicamento lopinavir/ritonavir, à época testado para tratamento de Covid-19, também reconheceu que suas patentes eram “uma barreira a fontes alternativas de abastecimento” e, por isso, não só acatou a decisão do governo israelense como renunciou a seus direitos de propriedade intelectual em todos os países e para todos os usos do medicamento. 

Na verdade, barreira seria um termo até brando para descrever o que os direitos de propriedade intelectual criam em torno de produtos essenciais. 

Apenas a empresa Moderna já detém 270 patentes concedidas e outras 600 pendentes, relacionadas à tecnologia de mRNA. Diversas patentes solicitadas no ano passado ainda estão em período de sigilo e nem sequer foram identificadas. Diversos litígios entre empresas que utilizam esta tecnologia já estão silenciosamente em curso. Algoritmos computacionais necessários no processo de produção das vacinas de mRNA estão protegidos por Copyrights. Métodos e técnicas de produção estão protegidas por segredos industriais.

Sem medidas capazes de fazer a suspensão completa desse “labirinto”, novas vacinas que utilizam a tecnologia de mRNA poderão ser bloqueadas de entrar no mercado e a produção de versões “genéricas” das vacinas que já existem dependerá exclusivamente da vontade das empresas que hoje controlam o mercado. Sem contar que a colaboração necessária para que esse tipo de vacina seja adaptada para combater novas variantes ficará presa a uma teia densa de acordos cruzados de licenciamento ou dependerá de caríssimos litígios. 

Por fim, chama a atenção a narrativa de que não existe capacidade para a produção de vacinas de Covid-19 em países em desenvolvimento e que, mesmo se houvesse, não existe disponibilidade de ingredientes, portanto, a licença compulsória nacional e/ou a suspensão global seriam inúteis. Esses argumentos tentam criar duas ilusões: a de que a produção de vacinas é mais complexa do que de fato é; e a de que a falta de insumos essenciais nada tem a ver com propriedade intelectual.

Enquanto as grandes multinacionais farmacêuticas declaram que as vacinas de mRNA são extremamente complexas de produzir, estabelecem linhas produtivas em menos de seis meses, inclusive em fábricas que nunca produziram vacinas antes. O que nos leva a crer que, talvez, a grande novidade dessas vacinas seja na verdade sua simplicidade. De acordo com relatório do INPI, lançado ano passado:

“Dentre as maiores vantagens das vacinas de ácidos nucleicos (DNA ou RNA) está a possibilidade de produção rápida em larga escala a um custo menor, tendo em vista que não há necessidade de cultivar os microrganismos, como no caso das vacinas atenuadas e inativadas, o que permite uma estrutura de laboratório mais enxuta. Adicionalmente, a plataforma de vacina de RNA é flexível, o que permite a rápida adaptação da vacina para novas variantes do vírus, comum nas viroses respiratórias, diminuindo o tempo para a eventual necessidade de desenvolvimento de novas vacinas.”

A maior complexidade relacionada a estas vacinas provavelmente está no processo conhecido como junção da nanopartícula de lipídio (LNP, na sigla em inglês). Partes essenciais desse processo podem estar descritas no dossiê regulatório entregue a agências como a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), no ato de aprovação do produto para comercialização. 

Com a suspensão de regras de propriedade intelectual, as agências reguladoras ficam autorizadas a compartilhar essas informações, facilitando assim a diversificação de produtores. 

De acordo com as empresas, o gargalo hoje responsável por constantes atrasos na entrega de vacinas é a falta de ingredientes, e isso é usado como argumento para desencorajar qualquer medida de propriedade intelectual voltada para autorizar novos produtores. 

Mas é necessário dizer que existem também inúmeras patentes sobre os ingredientes básicos para a formulação de vacinas, sobre as sequências genéticas, as células hospedeiras e os vetores virais. Para as vacinas de mRNA um ingrediente chave é o lipídio catiônico customizado. Como essas moléculas são patenteadas, existem muito poucos fornecedores e, por isso, a oferta tem sido precária. Tudo indica que a produção de lipídios catiônicos poderia ser expandida rapidamente caso essas barreiras de propriedade intelectual não existissem. 

A humanidade se encontra hoje numa encruzilhada. Temos um caminho aberto para o uso de licenças compulsórias de forma ampla, rápida e automática – no Brasil existem diversos projetos de lei nessa direção – e também para o uso da suspensão global de certos direitos de propriedade intelectual, com um consenso de alto nível político cada vez mais perto de ser atingido. 

Por outro lado, temos as grandes empresas farmacêuticas dizendo que, se seguirmos por essa via, as consequências serão danosas. O que elas propõem, no entanto, é investir num caminho no qual elas seguem controlando a cadeia produtiva e onde elas definem os termos dos contratos. Bom, esse caminho já demonstra seu desgaste e ineficiência e significa a manutenção do ritmo atual de vacinação, que implicará a continuidade do estado de pandemia por muitos anos.

Para uma organização humanitária como a Médicos Sem Fronteiras, que já enfrentou muitas crises de acesso a medicamentos e vacinas no passado, está muito claro o ponto onde chegamos. 

As grandes empresas já estabeleceram uma linha produtiva capaz de abastecer os países mais ricos, onde as vendas são mais rentáveis, e não têm interesse em investir ao ponto de abastecer os países mais pobres, onde os preços serão menos rentáveis. Até porque, com o sucesso dos esforços de oferta universal de vacinação a demanda tende a desaparecer. 

Ao mesmo tempo, essas empresas não querem permitir que outros produtores cubram a demanda dos países mais pobres, pois isso significaria ter que relativizar as regras de propriedade intelectual e reduziria a assimetria tecnológica da qual elas extraem vantagens comerciais. Uma vez que esse abismo é criado, apenas soluções políticas podem resolvê-lo. 

Então, a grande pergunta que rege o debate público é: quais seriam as consequências das soluções políticas que estão postas na mesa? 

A afirmação de que o uso de licença compulsória vai acabar com a inovação não tem nenhuma base empírica. Entre 2001 e 2016 foram emitidas 73 licenças compulsórias para medicamentos de HIV/Aids e a doença nunca deixou de receber massivos investimentos em inovação. O mesmo pode ser dito a respeito do câncer, uma das áreas que mais concentra investimentos de pesquisa e desenvolvimento. No mesmo período, 12 licenças compulsórias foram emitidas ao redor do mundo para ampliar acesso a tratamentos de câncer e os investimentos seguem inabalados.

O argumento de que licença compulsória vai prejudicar a recuperação dos investimentos não se sustenta no caso das vacinas para Covid-19, amplamente financiadas com recursos públicos, principalmente nos estágios mais arriscados do ciclo de inovação. E provavelmente as empresas estão tendo uma das melhores taxas de retorno sobre investimento de toda sua história. 

Apenas o que a Pfizer, a Johnson & Johnson e a AstraZeneca, três dos maiores produtores atuais de vacinas para Covid-19, pagaram de dividendos para seus acionistas no ano passado, equivale a U$ 26 bilhões de dólares, verba que seria suficiente para vacinar todo o continente africano, onde vivem 1,3 bilhões de pessoas. 

Portanto, o medo que as grandes empresas sentem em relação à licença compulsória é outro. É o medo de que, ao chegarem novos produtores, haja mais transparência sobre os custos de produção, evidenciando assim eventuais abusos de preço criados durante o monopólio. É o medo de ficar explícito que a dita complexidade da produção era um exagero. É o medo de que as colaborações que se tornarão possíveis com a suspensão de direitos de propriedade intelectual possam se provar muito mais eficientes do que as colaborações que são hoje regidas pelos detentores das patentes. 

Desse medo estão derivando argumentos que hoje travam o avanço das negociações na OMC para a suspensão de direitos de propriedade intelectual sobre vacinas, medicamentos e outros bens essenciais para combate à Covid-19 e que travam o avanço de projetos de lei no Brasil que criam uma estratégia de licença compulsória realmente à altura do desafio de impedir monopólios durante pandemias. Especialmente aqueles projetos que estabelecem um mecanismo automático, visando justamente blindar a licença compulsória de tantos ataques que, embora infundados, acabam por suprimir sua utilização e seus benefícios sociais. 

Precisamos lembrar que o sistema de patentes não existe unicamente para proteger detentores de patente. Na realidade, sua função primordial é proteger o domínio público. Por isso, é urgente que os conhecimentos por trás das vacinas e de qualquer outro produto essencial para o enfrentamento da Covid-19 estejam em domínio público, para construirmos uma saída coletiva para essa crise coletiva. 

Enquanto isso não for feito, seja via licenças compulsórias em cada país ou conjuntamente, mediante aprovação de proposta de suspensão temporária de alguns direitos de propriedade intelectual na OMC, estaremos presos ao passado. A um passado no qual pandemias exacerbam desigualdades, em que vidas são descartáveis e patentes são intocáveis, em que o vírus circula livremente e o conhecimento que pode contê-lo fica aprisionado em barreiras legais.