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O Brasil precisa priorizar seu recurso mais precioso: a água

Artigo publicado na revista Nature alerta para a urgência de um abrangente plano nacional de gestão hídrica baseado no conhecimento científico

Flavio Lobo

No contexto das mudanças climáticas, o Brasil pode se tornar o grande exemplo global de resiliência hídrica e desenvolvimento sustentável movido a água ou de desperdício do maior manancial hídrico do planeta e catastrófica desertificação. Esse dramático alerta de risco e oportunidade foi feito por três pesquisadores brasileiros na mais prestigiosa revista científica do mundo, a britânica Nature, no artigo “Brazil is in water crisis — it needs a drought plan” (O Brasil está numa crise hídrica e precisa de um plano contra seca).

De autoria de Augusto Getirana (pesquisador da NASA, formado em engenharia pela UFRJ, com doutorado com ênfase em modelagem hidrológica pela mesma instituição), Renata Libonati (professora de meteorologia da UFRJ com doutorado em geografia pela Universidade de Lisboa) e Marcio Cataldi (professor de engenharia ambiental na UFF, com doutorado em engenharia civil pela UFRJ), o estudo foi publicado em dezembro e endossado por outros 95 especialistas no tema, como os climatologistas Carlos Nobre e Paulo Artaxo.

Como avisam os autores, trata-se de um desafio existencial brasileiro que, diante da importância do país em termos de manancial hídrico e como provedor internacional de alimentos, terá impactos globais crescentes.

Leia, a seguir, uma síntese do artigo sobre a crise hídrica brasileira recém-publicado na Nature.

Abundância mal gerida

Cerca de 20% de toda a água que flui da terra para os oceanos é gerada no território brasileiro e apenas dois terços do volume corrente no Rio Amazonas – mostrado em foto de satélite na imagem que ilustra esta notícia – supriria toda a demanda hídrica global.

País provido da maior quantidade de água doce, o Brasil sofre com falta de água em grande parte do seu território, situação que vem se agravando sobretudo na região mais populosa, do centro-sul. Para se ter uma ideia da dimensão do problema, entre março e maio de 2021, registrou-se nessa região uma redução de 267 km3 no volume total de água existente em rios, lagos, solo e aquíferos, em relação à média dos últimos 20 anos (veja as variações na distribuição de chuvas em todo o território brasileiro no primeiro infográfico do artigo da Nature).

Entre os prejuízos socioeconômicos imediatos estão o aumento do preço da energia elétrica (na casa dos 130% entre 2020 e 2021) e de produtos da agropecuária, setor que gera quase 25% do PIB nacional e cujo declínio, além de empobrecer o país, agrava a insegurança alimentar da população.

Altamente dependente de abundância hídrica para geração de energia (65% hidrelétrica) e produção econômica, o país vem minando seu regime de chuvas ao permitir o avanço do desmatamento, sobretudo na floresta amazônica, cuja transpiração forma os “rios voadores” que levam água para as hoje mais afetadas por secas.

Plano nacional contra a seca

Para enfrentar essa situação e reverter a tendência de escalada da seca e dos múltiplos danos por ela causados, os autores do artigo defendem a necessidade urgente de um plano nacional integrando vários conjuntos de políticas e medidas, com destaque para o aumento da aplicação de ciência e a tecnologia. Por exemplo:

  • Melhor monitoramento de fatores climáticos incluindo cobertura abrangente, precisão e rápido processamento de dados e imagens de desmatamento, queimadas, incêndios e uso do solo;
  • Construção e aprimoramento de modelos para redução de riscos e prejuízos ambientais e socioeconômicos e de saúde pública em casos localizados de eventos extremos como secas e ondas de calor;
  • Criação de uma rede nacional de monitoramento de umidade do solo associada sistemas de controle de uso de águas subterrâneas (hoje o Brasil monitora águas subterrâneas em 409 locais, enquanto nos EUA e na Índia, por exemplo, esse controle se estende por 16 e 22 mil locais, respectivamente);
  • Investimento em pesquisas sobre impactos populacionais e migratórios das mudanças climáticas, especialmente de secas prolongadas, de modo a direcionar políticas públicas à prevenção e mitigação de riscos;
  • Diversificação da matriz energética com maior emprego de tecnologias solares e eólicas.

Os autores assinalam que, na contramão dessas necessidades urgentes, o orçamento de Ciência de Tecnologia brasileiro vem sendo sistemática e substancialmente reduzido nos últimos anos (a própria Nature noticiou recentemente o agravamento da redução de recursos para C&T no Brasil – tema abordado também na nota técnica do IPEA “Políticas Públicas para Ciência e Tecnologia no Brasil: cenário e evolução recente”). Situação que não apenas inviabiliza novas ações indispensáveis para uma gestão responsável dos recursos hídricos como também atrasa atualizações tecnológicas vitais. Um exemplo nesse sentido citado no artigo é a substituição do supercomputador Tupã, do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE), peça central, mas já praticamente obsoleta, no processamento de dados necessário para o sucesso de um plano nacional contra a seca.

Neste 2022, em meio às discussões eleitorais sobre os grandes desafios nacionais, é hora de reconhecer e tratar a gestão hídrica como fator decisivo para os destinos da sociedade brasileira e da humanidade.